Carta a Pessoa
Meu querido Fernando,
Várias vezes li Alberto Caeiro negar a metafísica.
No entanto, o acto de comentar a validade da metafísica torna o mestre, por definição, num meta-metafísico.
Um vulgar metafísico não participa no artifício rebuscado de se questionarem as questões.
Alberto, meu querido pastor, duvidaste da metafísica e assim te tornaste no mais metafísico de todos— o mais afastado do vento e das flores.
Talvez nos tenhas revelado o Fernando, talvez um dos outros.
O Alberto, esse, desconhece tais palavras.
Com admiração e um abraço,
O leitor
Carta de amor que encontrei no chão na Festa da Labareda de Resende 2017.
Querido Fábio,
É verdade, tou-te a escrever uma carta. Sei que me vais odiar por isto mas tinha de o fazer. Tou a abarrotar de saudades tuas. E saudades daquela noite há exactamente um ano aqui na festa da labareda de Resende. Nunca me vou eskecer das estrelas dessa noite. Nunca me vou eskecer das pipocas. Nunca me vou eskecer da maneira como me deste a mão para irmos a correr até o nosso carrinho de choque. Era o numero 16. Como me soube bem ser guiada por ti, ser controlada por ti, deixar-me levar por onde quisesses. Tava a dar a nossa música: Micael Carreira - qualquer coisa. A música que eu mais amo. Que mais venero. Agora andas no secundário e já te axas grande é? Uma miuda do nono ano já não é nada para ti pois nao? Escrever perguntas carregadas de ironia adolescente dentro do mesmo género que na verdade são de uma beleza rara. Pois é Fábio, eu ainda gosto de ti, pensei que a Cátia te tinha dito mas tu não ligaste puto e não vou desistir assim de ti. A escrita vai ficando cada vez pior, mas de vez em quando começa a dar sinais de poder melhorar. Mas muito aos poucos, Fábio. Pouco a pouco. Uma carta que começou por ser uma fonte de comédia e enternecimento pela inocência adolescente acaba por ficar literatura Fábio. Percebes? Já percebeste o que é suposto tares a sentir? Tas habituado a saber sempre o que é suposto estares a sentir então já não sabes ler com honestidade Fábio. Tornaste-te numa daquelas pessoas que pensa que já leu muito e que tem uma opinião muito válida sobre escrita sem te aperceberes que essa tua opinião resulta de livros que nunca te deram oportunidade de sentir alguma coisa que não estivesse a ser orquestrada. É como quando uma música triste num filme te indica que é suposto começares a sentir tristeza. É por isso que não sabes se agora devias estar confuso, enternecido, a rir, ou num estado de admiração pela minha carta de amor. Já me disseram que a escrever sou uma merda. A minha irmã diz-me que sou uma merda tas a ver? Mas tou-me a cagar. Mesmo que pensem que escrevo mal, eles não sabem o que estou a sentir e há poucas coisas mais fortes do que isto Fábio. O facto de não conseguir escrever bem não muda a verdade daquilo que sinto.
O melhor é não tentares sentir nada de propósito.
Se me amares, ama-me sem esforço, como eu te amo.
Deixa-os rir Fábio.
A verdade é que com a idade deles já não conseguem sentir isto.
Amo-te,
Carolina
Nirmal Hriday
01/2017
A Dança
12/2016
07/2016
Vespa
Vespa.
Encontrei te de lado a espernear e sentei-me ao teu lado.
Porque é que vieste morrer para a praia?
Ja eras velha e sabias que tinha chegado o teu último dia?
Se calhar escolheste vir morrer para a praia porque querias morrer no sítio mais bonito que conhecias.
Uma praia vazia.
Morreste tão sozinha.
Uma vez o Herzog filmou um pinguim que decidiu caminhar na direção contrária a todos os outros pinguins, rumo ao vazio do deserto antártico e rumo à morte certa.
Também tiveste uma depressão como aquele pinguim?
O que é que picaste para por fim à tua vida?
Não deve ter sido areia, deve ter sido alguma coisa mais dura.
Ou morreste sem querer?
Se calhar apanhaste um susto. Picaste alguma coisa que te assustou e isso foi o teu fim.
Que sorte temos nós, os humanos, por nos podermos assustar e magoar os outros sem termos que morrer.
Alguém vai ter saudades tuas?
Esticavas as patas em direção ao teu ferrão, parecias uma mulher a contorcer de dor. Esperneavas de forma cada vez mais lenta. Perdias força. Durante uns segundos encolheste-te o máximo que conseguias (ficaste quase redonda) e finalmente houve um último espasmo, um último surto de energia que te relaxou o corpo.
O teu corpo desenrolou, foi esticando devagar, e só movias as antenas até que já não. Foi o último sinal de teres estado viva.
Talvez seja pelas antenas que a alma de uma vespa se junta à grandeza de tudo aquilo que não vemos.
Percebi que tinhas morrido porque as tuas asas vibravam com o vento leve do norte. Era um vento fresco e bom. Parecias em paz. Fogo. Que paz.
Finalmente estavas a deixar o vento passar por ti.
02/06/2016
Conversa Que Ouvi na Esplanada de um Café - Adaptado
"Então queres que agora de repente passe a odiar o Mário?"
"Não, não é ódio"
"Então?"
"O Mário era bruto a falar contigo. Não tinha cuidado com as tuas emoções e fez-te sofrer. Percebeste há uns tempos que não podias confiar nele e que te mentiu na cara. E tu perdoaste-o. Perdoaste-o de coisas que descobriste por acaso, coisas que poderias nunca ter descoberto. Várias coisas. Olha se nunca tivesses descoberto! Para onde é que isso podia ir parar? E se descobriste isso sem querer como é que sabes que não havia outras coisas que nunca descobriste? Para além disso tudo, claramente não te valorizava se não nem lhe passava pela cabeça dar sequer espaço para isso. E logo um mulherão como tu! Coitadinho dele mas é!"
"Isso não é verdade, ele valorizava-me... acho eu."
"Está bem, mas isso é porque neste momento não consegues pensar direito porque tás a sentir muitas coisas Sofia. Olha... uma vez quando tinha prai 19 anos tava super apaixonada por um gajo que acabou comigo e tava de coração completamente partido tás a ver? E a pensar se deveria ir atrás dele ou não. Claro que nessa altura era uma chavala mas a minha avó ensinou-me uma coisa que nunca mais me esqueci até hoje e que te vou ensinar agora a ti.
Imagina que estávamos as duas aqui no café mas era ao contrário. Era eu que tinha chegado hoje do estrangeiro e te contava sobre um namorado com quem eu tinha sido uma namorada exemplar e a quem tinha dado todo o meu amor, mas que ele me tinha escondido coisas e deixado a sofrer, que me tinha mentido, que era bruto a falar comigo e que era pouco cuidadoso com as minhas emoções. Querias esse homem para mim? Para a tua melhor amiga?"
"Acho que não."
"E querias esse homem um dia para as tuas filhas?"
"Não."
"E querias um namorado assim para a tua mãe?"
"Não."
"Então é porque não queres um homem assim para ti Sofia!"
(A Sofia ficou em silêncio, e em silêncio começou a chorar, os olhos ficaram mais bonitos)
"Pois... tens razão..."
"Quando as resposta forem todas sim, vai ser o homem da tua vida."
(Não é ódio minha querida Sofia, quanto muito é amor.)
05/2016
Penedo de S. João
O Penedo de S. João lembrava-se de não ter nome. Lembrava-se de nem saber o que era isso de ter um nome. Os nomes tinham chegado com os homens, há relativamente pouco tempo, e esse era o nome que lhe tinham dado a ele. Não se importava deste nome, o nome não o aquecia como o sol nem o arrefecia como a chuva, era apenas um nome dos homens, e tal como todas as épocas anteriores a dos homens haveria de passar e tudo voltaria a não ter nome como dantes.
O Penedo sempre esteve lá, quieto, a ver o Douro, e como todas as outras coisas à sua volta não se lembrava da sensação de ainda não existir. Lembrava-se só de muito tempo. O tempo fazia parte dele e tinha deixado as marcas que faziam dele o penedo que era hoje e que os homens conheciam. Lembrava-se de todas as épocas. Todas o tinham moldado. O tempo para o Penedo era só tempo e não tinha nenhum significado especial, tal como o tempo para o homem ou para o cão selvagem também é só tempo mas noutra escala. O tempo mudava tudo em ciclos de vários tamanhos sobrepostos uns aos outros: em ciclos mais pequenos como a noite e o dia, em estações do ano, e em ciclos muito maiores como os do calor e do frio. Às vezes tentava procurar o ciclo mais pequeno de todos, mais pequeno ainda que o ciclo da noite e do dia. O mais pequeno que conhecia era o da respiração calma dos animais que dormiam ao sol nas pedras quentes.
A vida toda viu movimento à sua volta mas nunca o tinha sentido. Via o movimento do sol e das estrelas e o movimento do vento e das raposas. Via o movimento mas queria conhecê-lo mais intimamente. Como seria mover-se? Será que o horizonte sairia daquele lugar fixo? Será que existiam mais flores no mundo para além das que ele conseguia ver? Como é que seria aquele bocado do Douro logo abaixo que não conseguia ver? Será que a própria realidade, em movimento, seria completamente outra? O sonho do penedo era mover-se. Sonhava finalmente poder rebolar pelo monte abaixo e cair nas águas limpas do Douro. Sonhava todos os dias há mais de mil anos, pacientemente. Esta existência já o cansava. Acontece que o Penedo de S. João, passado biliões de anos de existência, queria alguma coisa.
O Homem eram o animal mais mágico de todos porque era o único que conseguia sofrer só com a cabeça. Lembrava-se da beleza de centenas de homens e mulheres dos últimos mil anos. Lembrava-se de uma mulher nova que ia pintar para o seu lado e chorava. De um homem velho que se deitava no chão a escrever com um lápis. Lembrava-se de um homem que se tinha enforcado no carvalho que depois vieram da vila para cortar e lembrava-se de um casal apaixonado que estacionava o carro lá perto e ficavam agarrados no banco de trás a noite toda, viciados no cheiro um do outro. Tudo o que o Penedo conhecia que não estava à vista tinha aprendido nas conversas dos homens: os livros, a razão, a música, as palavras, a noção de amor e de desejo. Os homens eram de uma beleza rara. Pareciam estar sempre algures entre um desamor e um amor. Mesmo quando estavam completamente no amor, mantinham um bocadinho do seu desamor. Às vezes o Penedo ouvia-os falar de outros sítios ao longo do vale onde a vista era mais bonita do que a dele. Através dessas conversas percebeu que para os homens a beleza depende mais do estado de espírito do que da beleza em si. Os homens sofriam muito por viver numa ilusão de controlo, tanto do seu destino como do destino e dos desejo dos outros. Viviam numa obsessão com causa e consequência e viviam num mundo onde apenas era verdadeiro o que se conseguisse explicar dessa forma. Tinham a melhor cabeça em toda a Natureza mas menos ligação com o mistério d'Ela do que as formigas. Falavam da natureza como se fosse uma coisa fora deles, ou para além da existência deles. “Na natureza!” diziam eles. Não percebiam que tinham tudo o que precisavam para ser a parte mais bonita dela.
Tinham nomes para tudo. Tinham milhares de nomes para emoções e sensações e decisões que os impediam de sentir as coisas de forma natural. Não conseguiam ter a simplicidade e conforto que via nas famílias de lobos. Criavam palavras para coisas que todos os animais sentiam e outras para coisas que só eles percebiam. Prendiam-se às palavras e criavam regras de comportamento associadas a essas palavras. Tinham medo. Para além de terem medo e de terem nomes, chegavam a ter medo de sentir coisas que apenas eram nomes. Às vezes o Penedo olhava para os homens e pensava que eles pareciam a parte menos natural da natureza. Foi assim, a observar o homem, que o Penedo aprendeu o que era o desejo e aprendeu também ele a desejar.
Um dia uma pequena pedra moveu-se e o Penedo começou a rebolar. A chorar, rebolou pelas ervas e pelo monte abaixo. Chorava cheio de felicidade e cheio de medo do desconhecido. Era o fim da vida que conhecia. Imaginava a sensação de estar envolto das águas do Douro. Seria muito diferente da água da chuva? Queria agarrar-se à paisagem que rebolava à sua frente, abraçá-la com força e levá-la consigo. Deixou-se ir. Não havia nada que pudesse fazer.
Domingo de Páscoa, 2016
Sonatina de Kreutzer
Estava tonto.06/2016
Concurso - Viagem Fictícia À Islândia
Acabei de aterrar na Islândia.
A primeira coisa que faço é bater palmas ao piloto... gosto de ser sempre eu a começar essas coisas.
A segunda coisa que faço é dar um beijinho à minha namorada. Está com um ar reprovador, ainda que mostrando traços de um leve sorriso. No fundo ela gosta de mim por ainda conseguir ser tão infantil.
A vigésima-segunda coisa que faço, normalmente, é fingir que está alguém à minha espera na zona das chegadas. A porta automática abre-se e digo um "olá" muito eufórico e feliz com o braço para um grupo imaginário que está no fundo da multidão.
A vigésima-terceira coisa que faço é olhar para a reação da minha namorada.
A trigésima-quarta coisa é começar a absorver o máximo que conseguir a caminho da guest house. Absorver a arquitectura, a cultura, os traços das caras das pessoas, a paisagem, e se tiver a sorte de alguém ir a comer uma merenda no autocarro: a comida.
A trigésima-quinta é dar a mão à minha namorada e comentar alguma observação que tenha feito na coisa anterior.
A quadragésima-quarta coisa que faço é conhecer uma pessoa local.
A quadragésima-quinta é perguntar ao meu novo amigo o que deveríamos fazer enquanto lá estamos e já agora matar a curiosidade e perguntar como é que se pronuncia Hallormsstaðaskógur.
A quinquagésima-quinta coisa que faço é fotografar a Aurora Boreal. Esta será provavelmente seguida pela quinquagésima-sexta: reparar que é impossível a fotografia algum dia fazer justiça à realidade.
A octogésima-nona coisa que faço é procurar um pequeno "R" num auricular e entregá-lo à minha namorada. Estamos num autocarro a caminho de um parque natural, temos o nariz frio, e vamos juntos a olhar pela janela e a ouvir Sigur Rós. A música é a Glósóli.
A nonagésima é dar-lhe a mão.
A nonagésima-primeira é ser invadido por gratidão.
A nonagésima-segunda é apertar a mão dela com mais força e tentar guardar aquele momento para sempre.
15/12/2014
Cheiro a Avião
Às vezes entro num voo,
E sou atacado à entrada pelo cheiro
a cinto, banco e tapete de avião.
Muso sobre de onde vem a inspiração.
Tiro o livro e muso.
Mas passam scratchcards.
Não me consigo concentrar.
11/2015
Beach Buggy
No Chimoio a terra era avermelhada e a cor dessa terra pintava as nossas vidas.
As sapatilhas brancas, compradas em Mutare, não sobreviviam um único dia sem ganhar o vermelho acastanhado daquelas ruas.
Continua a ser essa a cor do sabor a cana de açúcar, descascada com os dentes brancos dos nosso amigos, mastigados pelos nossos amarelados, e cuspidos para o chão a caminho de qualquer campo de futebol. É a cor das feridas piores que se faziam nas pernas, as feridas em que o sangue se misturava com a cor da terra e secava na pele. É a cor do futebol, uma infinidade de futebol, todo o futebol que se pudesse jogar no ringue, nos treinos, na tourada, no campo da Textáfrica e nos passes longos do jardim da frente. É a cor que a nossa mãe via todos os dias nas nossas tshirts brancas velhas, e nos nossos calções que nunca sabíamos de onde vinham mas que tínhamos sempre na gaveta.
A cor desses dias ainda deve lá viver nas bolas de futebol. Uma boa bola de futebol não era uma bola branca, de marca ou com um ar de bola nova. Uma boa bola era uma bola que tinha todas as cozeduras geométricas inundadas por essa cor, e a superfície da bola em si já ligeiramente escurecida pelo uso (mas não tanto que já não se conseguisse sentir uma certa textura e a bola estivesse demasiado lisa). Estes eram os sinais não comunicados que todos conhecíamos sobre uma boa bola de futebol, uma bola que já se tinha provado por aquelas ruas.
Era também a cor da nuvem de pó que se levantava por trás do Beach Buggy descapotável vermelho do meu irmão Pico.
No final de certo dia, preenchido como sempre de golos e suor, convidámos um amigo nosso para andar de buggy connosco. Ele trouxe o irmão pequenino que devia ter uns 5 anos, cheio de ranho e vestido com uma tshirt tão grande que apenas servia para tapar um ombro de cada vez. Era a primeira vez na vida que a criança teria o prazer de andar num carro, um momento que não se esqueceria tão cedo e que merecia todo o nosso respeito. Tirávamos sempre muito prazer em ver o fascínio dos nossos amigos com coisas que nunca tinham visto ou experimentado. Aos meus olhos, para esta criança a viagem seria uma espécie de montanha russa. Com a intenção de oferecermos uma experiência ainda mais intensa à criança, eu e o meu irmão João decidimos saltar para o banco de trás e deixar os irmãos andarem à frente, o pequenino ao colo do grande. Após umas voltas ao quarteirão e derrapagens, por algum motivo houve uma travagem muito brusca. A cabeça da criança voou contra o vidro do buggy com uma força estrondosa. PUM.
Lembro-me do nosso grande susto e do aperto no coração. Por milagre o vidro não se partiu. Lembro-me da criança com os olhos muito abertos e muito aguados, nervosa, e a olhar agitadamente à sua volta, como se tivesse acordado de um pesadelo. Sentimos uma enorme pena e espantou-nos em especial uma coisa: Em toda a confusão a criança não soltou um único barulho, um único berro, um único gemido. Permaneceu em total silêncio desde o momento em que entrou para o buggy, excitado, sorridente pelos meandros e derrapagens, até ao momento que nos abandonou com um grande galo e os olhos molhados ao colo do irmão.
Na altura senti-me branco, fiteiro e mimado.
Lembro-me de ter pensado que esta criança talvez fizesse tanta cerimónia e tivesse tanto cuidado por estar com a família Magalhães, e que esse respeito e vontade de agradar, ou medo de desagradar, se conseguiu sobrepor a qualquer instinto de choro. Lembro-me de imaginar a criança em casa, numa palhota redonda escurecida, muito atenta a ouvir os pais e os irmãos a falarem sobre a família Magalhães, a família do Sr. Engenheiro, e a criança afastada, sem ninguém dar por ela, a absorver e criar uma imagem da nossa vida misteriosa de abundância e cheia de pele branca .
Fomos os três para casa. O Pico a conduzir, o João à frente e eu atrás, moreno, magrinho, com um braço em cada banco e sempre muito atento a tudo o que eles diziam. O ar estava quente na minha cara e o sol aos poucos ficou da cor da terra. O nervosismo espaireceu, rimo-nos muito, os três, e não pensei mais nisso até hoje.
23/03/2014
Vem Aí o Túnel
Entra triste num carro descapotável do lado do passageiro.
Eu tava a escrever uma coisa tão bonita, um livro, e depois estraguei tudo com uma frase de merda, e agora não sei o que fazer para continuar. Apetece-me deitar tudo fora.
Não não não não, diz o amigo muito rápido, energético e concentrado na estrada (também ela rápida e cheia de energia, as luzes passam a correr. Ele conduz, excitado, na ponta da cadeira. Tem um ar insano e os olhos a brilhar. Está demasiado excitado para quem tem um amigo tão triste.)
Não é assim. Deitares tudo fora era seres burro, desculpa lá.
Tu deitares fora, para além do facto de tares a desisitir, era seres burro o suficiente para não perceber que ainda vai haver muitas partes bonitas.
Pronto tabém, deitar fora não. Mas puta que pariu, agora não consigo tirar a frase da cabeça... vou afogá-la em corrector.
Tem calma. Isso não é assim pa. Não podes deitar corrector à bruta por cima disso. Olha que se fizeres isso vai ficar tudo cheio de corrector em todo o lado e estragar as outras partes bonitas. Não não, o que tens de fazer é pegar no corrector, aqueles de caneta, e passar por cima de cada letra, percorrer de novo cada palavra, até a frase ficar apagada. Vai-te doer comó caralho mas vais ver que fica mais bonito.
E depois, escrevo por cima?
Nem pensar caralho. Deixas tar ali apagado, sossegado e continuas a escrever.
Agora prepara-te porque vamos entrar no túnel e vais começar.
17/02/2014
Mi Acabou a Pre-primária
Mi
Tens de guardar estes poemas!
Depois um dia quando já souberes ler com os olhos
Vais perceber que este poema não tem sentido rítmico nenhum.
Nem rima!
Nem sequer tem qualquer tipo de métrica ou musicalidade!
Se calhar vais pensar que eu com 23 anos estava a passar uma fase.
Uma espécie de corrente artística pessoal
Em que só acredito e valorizo o totalmente genuíno e instintivo
E em que critico o pensamento excessivo na criação.
Porque arte não é pensamento, é expressão.
Também vais perceber que se eu quisesse tinha feito um poema
Como
Já
Fiz
Muitos
Em que tudo rima
Quase tudo faz sentido
E tudo acaba de uma maneira perfeita
E nada fica por esclarecer.
Vais aprender a escrever e vais fazer muitos poemas
Poemas muito bonitos que rimam
Poemas sobre casas e flores.
Depois um dia quando já souberes ler com a cabeça
Vais ler este poema e não vais achar piada nenhuma
Vai ser estúpido e feio.
Mesmo que eu diga estas coisas.
Mas um dia vais ler e vais perceber.
Porque vais saber ler com a alma!
Tenho a certeza!
E tenho um desejo tremendo que nesse dia me venhas abraçar Mi
E que esse abraço me saiba tão bem como os abraços que te dou hoje
Hoje, que ainda és pequenina e a coisa mais querida do mundo.
Que entre agora e lá me dês muitos abracinhos.
Elefante
I Love You
Tomás
26/5/2010
Descoberta
Eu Tomás Magalhães,
em certo dia de primavera,
estava de costas para o sol,
a passear num parque.
Reparei que não tinha sol na cara,
e foi assim descobri,
em nome da humanidade,
que fazia sombra a mim próprio.
(2009)
É final da tarde quando começo a olhar,
para a parede de fundo do meu quarto.
É lá que vejo esta luz,
luz que não tem cor,
tem só luz,
e tem só sombra.
Vejo-me lá estampado
e invejo-me.
Envolto da luz quente
num final de dia frio.
Vejo-me lá verdadeiro,
rodeado de folhas,
de ramos e de luz.
Até que já não.
Faz-me lembrar o Peter Pan.
Não gosto quando as pessoas dizem “Pã”
É “PAN”.
(2006)
Bonito, piroso
Olho para uma árvore,
O pôr do sol está por trás,
Acentuando cada ramo,
Acentuando cada folha.
Mas o pôr do sol é tão fácil!
Já é foleiro e piroso.
E depois? Não é bonito?
Tudo o que é piroso já foi.
A árvore saiu da frente,
Porque não estou parado,
E vejo as mil cores de rosa,
De que tantos já escreveram.
Mas se tantos já escreveram,
Não digo nada de novo.
É uma beleza fácil,
É bonito, piroso.
(2005)
Não sou fã do soneto.
Não sou fã da epopeia.
Ser fã é fechar o pensamento.
Ser fã é ser burro.
Sou fã do que penso,
E é disso que escrevo.
Ei! Sou fã do que escrevo!
Agora sou burro.
(2004)